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Francisco: a voz do Sul e dos silenciados

Atualizado: 24 de abr.


Alisson Diego *





Francisco morreu no tempo mais simbólico do calendário cristão: logo após o Domingo de Páscoa. Na manhã de ontem, apareceu pela última vez em público na Praça de São Pedro, visivelmente fragilizado. Participou de alguns momentos da celebração pascal e pediu ao bispo Diego Ravelli que lesse sua mensagem na bênção Urbi et Orbi. Aquelas palavras foram a sua despedida: “A luz da Páscoa convida-nos a derrubar as barreiras que criam divisão e estão carregadas de consequências políticas e econômicas.” No texto, o pontífice disse que a situação em Gaza era “dramática e deplorável”. O papa também pediu ao grupo militante palestino Hamas que libertasse os reféns restantes e condenou o que chamou de uma tendência “preocupante” de antissemitismo no mundo. “Expresso minha proximidade aos sofrimentos… de todo o povo israelense e do povo palestino”, dizia a mensagem. Francisco destacou também que “não é possível haver paz sem um verdadeiro desarmamento” e também dirigiu uma benção para “todos os que, no mundo, têm responsabilidades políticas para que não cedam à lógica do medo que fecha, mas usem os recursos disponíveis para ajudar os necessitados, combater a fome e promover iniciativas que favoreçam o desenvolvimento. Estas são as “armas” da paz: aquelas que constroem o futuro, em vez de espalhar morte!". Mensagem bela, forte e corajosa.



Naquela mesma manhã de Páscoa, debilitado, mas resiliente, o Papa ainda encontrou tempo e disposição para o diálogo, mesmo com aqueles que cultivavam cosmovisões profundamente distintas da sua. Recebeu, na Casa Santa Marta, o vice-presidente dos Estados Unidos, J. D. Vance. Ofereceu-lhe uma gravata com o brasão do Vaticano, um rosário e três ovos de Páscoa para seus filhos. Cortesia evangélica. Francisco sabia que escutar não é concordar e que só há paz onde se constroem pontes.


Sua morte foi um ponto final sereno em uma vida atravessada por gestos de reconciliação, compaixão e escuta e o fim de um pontificado que marcou a história da Igreja e da humanidade com profundos gestos de amor. A morte de Francisco não foi dramática. Foi discreta, quase litúrgica. Francisco morreu como viveu: sem espetáculo, sem ruído, sem vanglória. Deixou à Igreja um exemplo que talvez só se compreenda inteiramente com o tempo. Um testemunho encarnado de que a autoridade espiritual não se afirma pelo poder, mas pela proximidade. De que o Evangelho, antes de ser pregado, deve ser vivido. Deixou, sobretudo, a marca de um humanismo espiritual que devolveu à Igreja algo que ela parecia ter esquecido: a beleza da simplicidade e a vocação sinodal.


Francisco foi um pontífice de muitos marcos. O primeiro a adotar esse nome, evocando o santo de Assis e seu homônimo padroeiro dos missionários. O primeiro papa das Américas. O primeiro jesuíta a ascender ao trono de Pedro. Também foi o primeiro papa a designar uma mulher para liderar uma instituição da Cúria Romana: Simona Brambilla, de 59 anos, nomeada em janeiro para chefiar a Dicastério para a Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, órgão responsável pela supervisão das ordens religiosas masculinas e femininas e pelas relações com os fiéis consagrados. Francisco também foi o primeiro a se reunir com o patriarca ortodoxo russo desde o cisma de 1054. E inovou ao nomear cardeais oriundos de países historicamente periféricos na geopolítica eclesiástica, como Ruanda, Cabo Verde, Tonga, Mianmar, Mongólia e Sudão do Sul; sinalizando uma abertura concreta à Igreja global, multicultural e descentralizada.

 

Francisco não travou uma cruzada contra a modernidade. Preferiu o caminho do diálogo, consciente de que nela residem riscos, mas também possibilidades. Reconhecia que a Igreja não deve conformar-se ao mundo, mas tampouco isolá-lo como inimigo. Em 2013, ao ser questionado sobre os homossexuais respondeu com a frase que se tornaria símbolo de sua postura pastoral: “Se eles buscam a Deus, quem sou eu para julgar?” Não se tratou de uma ruptura doutrinária, mas de uma inflexão na linguagem e no olhar. Uma nova chave para antigos portões — menos tribunais inquisitoriais, mais hospital de campanha, cuidado e afeto.


A teologia de Francisco não se limitava aos tratados dogmáticos; ela se fazia carne nos gestos, nos olhares, nas escolhas silenciosas. Evocando a expressão do teólogo Johann Baptist Metz sobre a “mística dos olhos abertos” ( uma fé que se recusa a ser cega ao sofrimento do outro), Francisco dizia com desconcertante franqueza: “Me dói ver um padre ou uma freira com um carro do último modelo.” Não era populismo: era verdadeira coerência evangélica. O papa argentino compreendia, como Karl Rahner antecipara, que o cristão do futuro deverá ser um místico, isto é, alguém que vive uma experiência existencial profunda de Deus, marcada pelo mergulho compassivo na realidade concreta dos pobres, dos marginalizados, dos esquecidos. Ele não apenas falava de Cristo como buscava configurá-lo em sua conduta. Seus gestos diziam mais que tratados e suas escolhas desestabilizavam mais que qualquer encenação palaciana. Francisco encarnava uma teologia que não se impunha pelo poder, mas pela presença missionária.


Ao tratar da abertura à vida, Francisco rompeu com os clichês reprodutivos de uma fé muitas vezes reduzida a automatismos biológicos ou moralismos estéreis. “Alguns pensam que, para sermos bons católicos, temos que nos reproduzir como coelhos, mas não”, afirmou, com a clareza de quem sabia distinguir doutrina de caricatura. Propunha a paternidade ética, responsável, fruto do discernimento e da maturidade afetiva — a obediência cega a preceitos mal compreendidos ele os refutava. Sua teologia era viva: feita de carne e história, de afeto e consciência, mais próxima da sabedoria evangélica do que de um legalismo abstrato.


Em sua visita ao México, em fevereiro de 2016, Francisco celebrou uma missa histórica na cidade fronteiriça de Ciudad Juárez. Ao retornar a Roma, questionado sobre as propostas do então pré-candidato Donald Trump, que prometia erguer um muro na divisa com o México, Francisco respondeu com clareza pastoral e contundência ética: “Uma pessoa que pensa apenas em construir muros, onde quer que seja, e não em construir pontes, não é cristã. Isso não está no Evangelho.” Corajosa crítica à lógica excludente dos nacionalismos contemporâneos. Sua doutrina era a do encontro, não a do medo. Sua política era a da compaixão, não do controle. Sua fé, uma travessia, não apenas entre territórios, mas entre pessoas, culturas, dores e esperanças. Francisco relembrava que o cristianismo se estrutura na ética do acolhimento e jamais na hostilidade disfarçada de zelo moral.


Em seu pontificado, Francisco não evitou confrontar as feridas abertas no seio da própria Igreja. Durante sua visita ao Chile, em janeiro de 2018, marcada por protestos e desconfiança, o Papa expressou publicamente sua dor e vergonha pelos abusos sexuais cometidos por membros do clero contra crianças. Em Santiago, declarou: "Não posso deixar de manifestar a dor e a vergonha, a vergonha que sinto diante do dano irreparável causado a crianças por parte de ministros da Igreja".​ Anos depois, em julho de 2022, durante uma "peregrinação penitencial" ao Canadá, Francisco pediu perdão aos povos indígenas pelo papel da Igreja Católica no sistema de escolas residenciais, que impôs uma assimilação cultural forçada a crianças indígenas. Em Maskwacis, afirmou: "Peço perdão humildemente pelo mal cometido por tantos cristãos contra os povos indígenas".​


Quando falava da América Latina, Francisco o fazia como filho e guardião de sua história marcada por opressões, fé resiliente e esperança. Em entrevista à agência Télam, em julho de 2022, foi enfático: “A América Latina sempre foi vítima e será vítima enquanto não terminar de se libertar dos imperialismos exploradores”. Posicionamento pastoral com raízes na teologia do povo. Anos antes, em 2015, na Bolívia, Francisco denunciou “o novo colonialismo” que se impõe “com o poder dos ídolos do dinheiro e da concentração midiática” e reconheceu os “pecados pessoais e sociais cometidos contra os povos originários durante a chamada conquista da América.” Definitivamente, Francisco não era um papa do Sul. Era o Sul no papado – que falava com coragem, ternura e autoridade profética .


Em dezembro do ano passado, em seu último discurso de Natal à Cúria Romana, o Papa condenou os bombardeios a Gaza: “Ontem, crianças foram bombardeadas. Isso é crueldade. Isso não é guerra. Quero dizê-lo por que toca o coração.”  Denúncia forte e corajosa dita não na linguagem amortecida da diplomacia, mas no timbre cru dos justos que possuem autoridade moral para dizê-lo. Francisco recusava a neutralidade equidistante diante da morte dos inocentes. Chamava as coisas pelo nome, mesmo quando o mundo preferia eufemismos. Sua palavra feria a indiferença e expunha o abismo entre a retórica dos interesses geopolíticos e a ética do Evangelho.


A primeira viagem de Francisco como Papa, em julho de 2013, já anunciava a natureza corajosa e profética de seu pontificado. Escolheu ir a Lampedusa, a ilha fronteiriça, símbolo da exclusão global, onde o Mediterrâneo se converte em cemitério para milhares de migrantes esquecidos. Diante de embarcações naufragadas, pronunciou: “A cultura do bem-estar nos torna insensíveis aos gritos dos outros (...); a globalização da indiferença nos tirou a capacidade de chorar.” Não era o papa dos protocolos, mas do coração ferido e da alma comprometida com os que sofrem. Suas palavras e sua vivência insistiam que sem compaixão, sem a humana capacidade de chorar, não há civilização possível. Penso que talvez esta tenha sido a sua verdadeira missão era esta: ensinar um mundo endurecido a sentir de novo. Porque, sem lágrimas, o humano se desfaz e o cristianismo não tem sentido.


Sua morte deixa um vácuo que é mais do que institucional: é ético. Francisco foi, acima de tudo, um grande humanista cristão. Acreditava que cada ser humano é um mistério sagrado, uma existência única a ser acolhida, escutada, jamais descartada. Fez do Evangelho uma ética da presença e do cuidado. Em um mundo saturado de discursos retóricos, beligerantes e vazios, Francisco ousou falar de fraternidade sem cinismo. Acreditava na palavra como gesto e no gesto como palavra. Parafraseando Espinosa, o papa argentino foi um espírito verdadeiramente livre: desses que pensam com o coração e amam com a razão. Um farol raro em tempos obnubilados. Sua ausência não silencia sua voz e sua inspiração deve continuar nos iluminando.


Em uma era estranha e extrema, Francisco caminhou com os pés descalços. Preferiu as feridas à fama. Preferiu os pequenos aos palácios. Preferiu o Cristo pobre ao Cristo de vitral.


Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, publicada em 24 de novembro de 2013, o Papa Francisco delineou uma visão audaciosa para a Igreja no mundo contemporâneo. No parágrafo 49, ele afirmou:​ "Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos."​ Francisco propõe uma doutrina que se ajoelha diante do sofrimento humano, que se compromete com a justiça social e que busca ser uma presença transformadora no mundo. Sua visão é de uma Igreja que, ao sair de si mesma, encontra sua verdadeira identidade e missão.​


Essa mesma coragem doutrinária, profundamente pastoral, reapareceria com força ainda maior em 2015, quando publicou a Laudato Si. Só um papa chamado Francisco poderia escrever uma encíclica como essa, atendendo ao chamado da Terra ferida. A primeira encíclica ecológica da história da Igreja, cuja densidade vai além do ambientalismo. Francisco não escreveu apenas sobre o clima ou as florestas: escreveu sobre o modo como vivemos, produzimos, descartamos e nos relacionamos. A ecologia, para ele, era integral: incluía o planeta, mas também os pobres, o tempo, as estruturas e a alma humana. Denunciava com vigor a “cultura do descarte” e o “paradigma tecnocrático” que desumaniza a vida e transforma tudo, inclusive pessoas, em mercadoria. Nesta encíclica há passagens de intensa poesia espiritual, em que a criação é vista como uma irmã com quem partilhamos a existência e como uma mãe que nos acolhe em seus braços, mas também há contundência denunciativa: “A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de imundície” (Laudato Si’, n. 21). Francisco nos lembra que não há espiritualidade autêntica dissociada da justiça e que a fé, quando viva, não teme o confronto com os grandes interesses do mundo.“Tudo está interligado”, repetia, num tom que era ao mesmo tempo teológico e existencial. A Laudato Si é uma convocação ao cuidado, à reverência e à responsabilidade.


Francisco começou seu pontificado pedindo que orassem por ele e terminou em silêncio, orando pelo mundo. A fé, para ele, era sobretudo isto: um modo de estar no mundo com coragem, com compaixão e com sensibilidade. Francisco devolveu à Igreja a sua dimensão mais radical: ser sinal vivo de misericórdia num tempo cínico, e de ternura num mundo armado. Fez do Evangelho um chão para os pés descalços e um abrigo para os desamparados. Na véspera de sua morte, ainda encontrou forças para desejar Feliz Páscoa, erguer a mão no papamóvel e despedir-se do povo na Praça de São. Sabia que a missão estava cumprida. Serviu até o fim, com inteireza. Amou até o limite. E agora repousa onde repousam os que disseram com a vida: “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância.” Foi uma das grandes consciências morais e espirituais do nosso tempo. E para nós que cremos, hoje mesmo está no lugar dos justos ao lado de Cristo.


É impossível não sentir tristeza nesta data. A ausência de Francisco toca o coração de todos pela ternura com que nos ensinou a viver o Evangelho. Se quisermos honrá-lo verdadeiramente, todavia, devemos recordar uma de suas convicções mais belas: a alegria é parte essencial da vida cristã. Como afirmou na exortação apostólica Evangelii Gaudium, de 24 de novembro de 2013: “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG, n. 1). Em homilia proferida em 28 de maio de 2018, Francisco reiterou: “A alegria cristã é o respiro do cristão. Um cristão que não é alegre no coração não é um bom cristão”. Em uma entrevista concedida ao jornal La Repubblica, em 1º de outubro de 2013, ele foi ainda mais incisivo: “Um cristão jamais deve parecer uma pessoa triste. O cristão é uma pessoa alegre. Não porque se diverte, mas porque tem dentro de si a alegria de Cristo”. Para Francisco, essa alegria era o sinal de uma fé viva, uma luz que não se apaga nem diante da morte. É ela que nos permite crer que sua missão está cumprida — e que ele, agora, repousa em paz. Em tempos de luto, sua memória nos convida à coragem serena de continuar construindo, com alegria e compaixão, o mundo que ele tanto sonhou: mais justo, mais fraterno, mais humano.

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