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Quando a racionalidade encontra o sagrado

Foto do escritor: Alisson DiegoAlisson Diego

Padre Zezinho e George  Gurdjieff
Padre Zezinho e George Gurdjieff

Meus escritos costumam permear temas como política, filosofia, cultura e gestão pública. Mas há aspectos da vida que nos atravessam, mesmo quando não os colocamos no papel. Um deles é a espiritualidade, um aspecto que sempre esteve presente em minha vida, embora tenha assumido formas diferentes ao longo do tempo.


Desde muito cedo, a fé esteve presente na minha vida. Gurizinho, acompanhava meus pais nas missas de domingo. Aos 13 anos, li a Bíblia inteira, movido por uma curiosidade que ia além da simples religiosidade — eu queria entender, ir além das palavras soltas, buscar um sentido mais profundo. Claro, não compreendi tudo o que buscava. Logicamente, ninguém aos 13 anos de idade possui maturidade, vivência e nem mesmo vocabulário suficiente para interpretar um livro tão denso e complexo. Mas, de alguma forma, aquela leitura me marcou. Mesmo sem alcançar todas as camadas do texto, algo permaneceu, como uma semente que só germinaria mais tarde. Aos 15, essa busca tomou um caminho mais concreto: entrei para um processo de orientação vocacional e, por um tempo, acreditei que minha trajetória seria a do sacerdócio. A ideia de dedicar minha vida a Deus, de servir através da Igreja, parecia fazer sentido naquele momento. Mas a vida, sempre cheia de desvios, me levou por outras veredas.


No entanto, a busca pela fé, como toda jornada humana, não é linear. Houve um tempo em que, no extremo oposto dessa caminhada, flertei com o ateísmo. Já não via a fé com os mesmos olhos, e a razão passou a ser meu instrumento principal. Questionei, duvidei, me distanciei daquilo que antes parecia tão certo. Mas descobri que a fé verdadeira não se apaga diante da dúvida — ela se transforma. E foi nesse processo, entre acreditar e duvidar, que fui encontrando um novo jeito de crer, mais maduro, mais consciente.


Em minha atmosfera religiosa, Padre Zezinho sempre foi uma presença constante. Suas canções faziam parte do ambiente, ora como fundo musical em momentos de oração, ora como reflexões cantadas que acompanhavam a minha caminhada da fé. Um Certo Galileu, Oração pela Família, Utopia, dentre outras — cada uma, à sua maneira, marcou diferentes fases da minha vida. Mas uma das músicas que mais me marcaram, ele a compôs já maduro — e eu já tinha uns 20 anos. Indagação não chegou a mim na infância, mas me encontrou quando eu já trazia perguntas que não me bastava ignorar. Não era uma canção de respostas prontas, mas sim um chamado à reflexão.


“Se tu não fazes perguntas, como pretendes saber?

Como pretendes saber?

Onde começam, pra onde é que vão

Essas torrentes que sulcam o chão?”


A fé que não se questiona, que não se permite a inquietação, corre o risco de se tornar apenas um reflexo automático, sem raiz nem profundidade. Minha fé não é a mesma da juventude — ela mudou, amadureceu, passou por crises e reconstruções. Mas continua sendo fé. E talvez seja justamente essa travessia, essa capacidade de se refazer sem se perder, que me faz compreender com mais clareza o que significa ter uma fé consciente.


"A fé consciente é liberdade; a fé mecânica, escravidão; A fé instintiva, loucura". Essas palavras são de George Ivanovich Gurdjieff, um mestre espiritual greco-armênio que viveu entre os séculos XIX e XX e dedicou a sua vida ao estudo da consciência humana. Gurdjieff não era um teólogo no sentido tradicional, mas um pensador que buscava compreender os mecanismos da mente e do espírito. Quando ele fala de fé consciente, não está se referindo a uma crença passiva, herdada, ou a uma aceitação automática das coisas. Pelo contrário, ele propõe uma fé que liberta exatamente porque é fruto da reflexão, do questionamento e do amadurecimento interior.


Essa reflexão ressoa profundamente em mim. Minha fé não se construiu sobre a repetição de fórmulas vazias, mas sobre um percurso de dúvidas e reconstruções. Ela já enfrentou perguntas difíceis, já dialogou com a razão, já viveu momentos de incerteza. Todavia, persiste. E persiste porque compreendi que as dúvidas não a enfraquecem — pelo contrário, a fortalecem. Dúvida e fé não são inimigas. A dúvida é o exercício que depura a crença, que a torna mais enraizada e, ao mesmo tempo, mais lúcida.


Santo Agostinho dizia que “a fé e a razão caminham juntas, mas a fé vai mais longe”. E eu acrescentaria: a fé consciente precisa da razão, assim como um viajante precisa do mapa. Mas há momentos em que se precisa ir além do que o mapa mostra.


São Paulo, na primeira carta aos Coríntios, diz: “Porque a palavra da cruz é loucura para os que perecem; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus” (1 Coríntios 1,18). Ele sabia que há algo na fé que desafia a lógica pura. O olhar puramente racional sobre Deus esbarra em limites intransponíveis. O que parece loucura para o mundo pode, na verdade, ser um tipo mais profundo de sabedoria — uma sabedoria que não se expressa em silogismos perfeitos, mas na experiência viva do sagrado. Isso não significa que a fé consciente seja irracional. Pelo contrário, significa que ela não se restringe ao que é mensurável, ao que pode ser explicado de forma cartesiana. Ela se abre ao mistério, mas com plena consciência desse movimento.


Talvez essa seja a grande diferença entre a fé mecânica e a fé consciente: a primeira aceita sem questionar, a segunda aceita porque questionou. A fé mecânica se contenta com o hábito; a fé consciente nasce de um embate interior, de um processo real de compreensão. A minha fé não me retira do mundo, não me aliena das dores e das contradições. Pelo contrário, ela me faz olhar para tudo isso com mais atenção, com mais compromisso.


E talvez seja justamente essa a liberdade de que falava Gurdjieff: não a liberdade de crer sem pensar, mas a liberdade que nasce do pensar e, ainda assim, ousa crer. Essa é, afinal, a essência de uma fé consciente. Não a fé que teme a dúvida, mas aquela que a enfrenta, que se refaz, que segue adiante sem perder a si mesma. Porque a verdadeira fé não é imutável — ela é viva, pulsa, amadurece. E, no fim, é essa fé que permanece.



 
 

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