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A coragem certa de Teresa Moure

Fonte: Diario de Navarra
Fonte: Diario de Navarra

Era o meu primeiro dia de aula em uma universidade mais antiga que meu país. Entrei em uma sala de aula muito diferente das salas de aula brasileiras. Lugares nas laterais para se colocar os casacos, alunos conversando em um idioma às vezes diferente e às vezes familiar. Havia muitas pessoas brancas, alvas como a neve, e eu, que parecia ser a única pessoa de cor, dourada pelo sol, naquela sala. Ah, o sol que eu não via há três dias. E uma semana atrás estava no Rio de Janeiro, calor escaldante e minha pele ainda marcada por aquela já saudosa intensidade.


A docente entra na sala e o silêncio impera imediatamente - poom! A porta bate de repente e quase me lembra a intensidade do Rio de Janeiro. Mas não foi necessário recorrer à recente nostalgia. Assim que a professora começou a falar, só tinha olhos e pensamentos para aquela excentricidade que via à minha frente. Era aula de sociolinguística e planificação das línguas - e a professora convidava as companheiras a apresentarem-se umas às outras, de uma maneira um pouco não convencional: deveríamos dizer o nome de todas as outras colegas antes de nós, e só depois, dizer o nosso.


Eu estava na terceira fileira de cima para baixo, e havia pelo menos mais três abaixo de mim. Quando chegou a minha vez, como se minha cara já não dissesse o bastante, precisei revelar minha identidade: “Olá. Meu nome é Dalmo (como todo falante do brasileiro, falei literalmente daumo), e como podem ver no meu sotaque, eu sou brasileiro”. Teresa pareceu contente em ter um aluno estrangeiro na turma e que fosse do outro lado do mar. Tentei com algum custo pronunciar o nome das companheiras, mas muito me surpreendi na dificuldade das companheiras e dos companheiros de classe em pronunciar meu nome. Após algumas ocorrências e vários olhares desconcertados que pareciam dizer “desculpe mas não consegui entender como se pronuncia seu nome”, Teresa escreveu meu nome com o giz no quadro e disse-o em voz alta: “daLLLLLLmo” (com o L bem no céu da boca, como no portunhol), “não é difícil”, ela terminou.


Poderia ficar horas contando a encantadora experiência de ter sido aluno de Teresa Moure, “a professora que tem uma página na Wikipedia”, como disse meu amigo chinês Xinyi, na matéria que fazíamos de Tipologia Linguística, também ministrada por Teresa. Trata-se de uma exímia linguista, daquelas que me fizeram ter a certeza de ter feito a escolha certa em me tornar bacharel em linguística - uma professora em que você se inspira pelo acúmulo de experiência, mas também pela didática inovadora e transgressora - como ao conciliar teoria dos jogos (uma proposta da matemática) com o dilema de preservação das línguas. Mesmo que após mais de um ano as aulas de Moure continuem vivas em minha memória, resolvi hoje falar da escritora Teresa Moure.


Antes de chegar à Galiza, pesquisando sobre o professorado, descobri a fama de Teresa, uma escritora galega premiadíssima! E pude confirmar isso nas aulas: turmas cheias, olhares atentos e um certo respeito e encantamento pela figura. Depois, a própria Teresa explicou-me, a maior parte leram os livros que ela escreveu enquanto estavam na escola.


Os temas centrais na obra de Teresa são o protagonismo feminino, a perspectiva ecofeminista e questões de gênero e linguagem. No entanto, Teresa não recorre ao didatismo e promove diversos gêneros literários às suas histórias. O seu livro mais aclamado pela crítica, Herba Moura, é composto por cartas, poemas, receitas, canções e trechos de diários que contam a história das amantes de Descartes.


Teresa deu continuidade àquela aula citando o belíssimo ensaio de Walter Benjamin “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” sobre a relação da perda da habilidade de narrar e a perda de vivências significativas cotidianas. As histórias de Teresa já foram traduzidas para diversos idiomas, e ainda me encanta o fato da mesma professora que nos explicava aspectos sintáticos em Luisenho, uma língua uto-azteca do sul da Califórnia, que propunha dinâmicas teatrais em sala para nos demonstrar os papeis de gênero na sociolinguística, ser a escritora potente, ousada e inovadora dos livros que impressionaram as galegas e toda a Europa!


Seus ensaios, como “Outro idioma é posible: na procura dunha lingua para a humanidade” (2004), “Queer-emos um mundo novo. Sobre cápsulas, xéneros e falsas clasificacións” (2011) e “Lingüística se escribe con A. La perspectiva de género en las ideas sobre el lenguaje” (2022) são igualmente impactantes. Os dois primeiros foram premiados com o Prêmio Ramón Piñeiro de ensaio, o mais tradicional prêmio de ensaios em galego, e o segundo foi o primeiro livro sobre teoria Queer e linguagem publicado em galego.


Em respeito aos ensinamentos que obtive com Teresa, tentei, ao longo deste texto, usar o feminino genérico para as palavras coletivas (como galegas, companheiras). Aprendi com ela que a linguagem é nossa ferramenta mais potente de posicionamento social e de expressão dos nossos ideais. Moure, para além de apenas dizer todas essas coisas, as vivência na prática. Em “A tribo que conserva o lume” (2020) conta a história do assassinato de um linguista que estudava uma língua ameríndia ameaçada de extinção. Em 2013 publicou um texto no jornal digital galego Praza Pública chamado “Sobre encruzilhadas, normas ortográficas e independência” em que defende a sobrevivência do seu próprio idioma por meio de uma norma ortográfica alternativa: o galego internacional, que adota a ortografia da lusofonia, firmada no Acordo Ortográfico Internacional de 1990.


Este movimento de aproximação do galego às diversas variedades da língua portuguesa, e que compreende o galego como uma das variedades que compõem esse mesmo sistema, chama-se reintegracionismo, e está presente desde os primórdios da luta e resistência da língua e cultura galega. Trata-se de uma maneira de preservar a vitalidade e uso da língua nas mais diversas situações e contextos sociais, e promover a variedade galega à língua mais falada no sul global.


Desde então, como Teresa abertamente expõe na mídia galega e de todo estado espanhol, não vem encontrando espaço para publicar suas histórias na norma ortográfica que representa seus ideais filosóficos, políticos e sociais. Os últimos livros de Moure em galego foram publicados pela Atráves Editora, a editora da Academia Galega da Língua Portuguesa, na qual Teresa é acadêmica.


O que me fascina é a capacidade de Teresa Moure em reinventar o jogo com astúcia e perspicácia. Neste ano, lançou a novela ‘Tirar del hilo’, em espanhol. Na matéria de lançamento, publicada no Diário de Navarra, declarou a frase que tornou-se título do texto: “He decidido que no me voy a callar como escritora”. Teresa decidiu escrever na língua do colonizador à contrariar-se e escrever conforme normas ortográficas impostas por instituições tradicionais que não a representam politicamente e filosoficamente.


Impossível não me lembrar do ensaio de bell hooks “Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens”, traduzido em 2008 para o português na revista Estudos Feministas. bell hooks abre o texto com um trecho do poema “The Burning of Paper Instead of Children” de Adrienne Rich (1929 – 2012): “Esta é a língua do opressor, no entanto eu preciso dela para falar com você”.


Para falar com as pessoas, transmiti-las suas histórias, inclusive denunciar e relatar a morte das línguas e das cosmovisões em todo o mundo, inclusive a sua própria, Moure, em um ato de coragem, pioneirismo e transgressão que me faltam palavras para dimensionar, abre mão de sua língua para comunicar-se.


Faço minha pequena contribuição por meio deste ensaio, conservando o fogo e tentando propagá-lo, na esperança de ver cada vez mais as histórias, as ideias e o nome de Teresa Moure em nosso país, no nosso galego tropical. Dei o título de “coragem certa” a esse texto não na presunção de achar que Teresa precisa de validação sobre suas atitudes, mas na absoluta certeza de que precisávamos de sua coragem - tão necessária que tornou-se certeira. O mundo com as histórias de Teresa, certamente, é um lugar mais criativo, inovador e camaleônico.

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