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O tempo que escorre pelas telas

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Não foi o tempo que sumiu, fomos nós que desaprendemos a percebê-lo, enquanto a vida escorre pelas telas sem que ninguém perceba.


Não foi o relógio que parou, fomos nós que deixamos de perceber o tempo. Ele continua avançando com exatidão cronometrada, mas se dissolve diante dos nossos olhos como pixels em transição. Estudos recentes da neurociência mostram que, ao interagirmos com estímulos digitais intensos e contínuos, perdemos a noção do tempo real. Rolamos o feed e, quando percebemos, a manhã já virou tarde, a tarde já precede a noite. E o curioso é que, mesmo cientes da armadilha, continuamos presos ao looping de atualizações, como se algo urgente estivesse prestes a acontecer. Mas o que realmente escapa, sem alarde e sem notificação, é o instante vivido, grudado na telinha ausente da realidade, esse que não volta e que as telas não alertam ninguém.


Chamam de curiosidade, mas talvez seja só ansiedade disfarçada. Um clique aqui, outro ali, e lá estamos nós, mergulhados em visualizações inúteis, vídeos de gente que não conhecemos e opiniões descartáveis que inflam o ego de quem publica, mas nada acrescentam a quem consome. A promessa de saber tudo o tempo todo nos transforma em navegadores errantes, afogados em superficialidades. Conhecemos os hábitos do cãozinho de um influenciador do Camboja, mas não sabemos o nome da senhora que mora no apartamento ao lado.


A internet aguça uma forma de curiosidade instantânea e alheia, compulsiva, que se satisfaz com migalhas de informação e raramente alcança a compreensão de quem consome. É um saber que desliza: efêmero, leve, volátil e ineficaz. Saltamos de uma aba para outra como quem tenta capturar algo importante, mas quase sempre terminamos com uma estranha sensação de vazio, abobados, sem nem saber o que procurávamos ali, no campo das curiosidades alheias. Isso porque, no fundo, a maioria dos conteúdos que consumimos serve apenas para preencher o silêncio, a ociosidade, a tensão do momento, impedindo-nos de expandir pensamentos fortuitos e conhecimentos reais.


O uso excessivo de telas tem alterado profundamente a infância. Crianças passam horas em frente a celulares e tablets, substituindo as brincadeiras ao ar livre por estímulos artificiais. Estudos da neurociência infantil, assim como orientações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da SBNI, alertam que essa exposição precoce e prolongada pode comprometer o desenvolvimento cognitivo e emocional. Déficit de atenção, atraso na fala, irritabilidade, isolamento social, distúrbios do sono, sedentarismo e problemas visuais são sintomas cada vez mais frequentes entre crianças e adolescentes.


Outro dia, no elevador, encontrei duas jovens mulheres conversando entre si. Cumprimentei-as com um “boa tarde” e continuei ouvindo-as sem querer, apenas pela proximidade.

— Vamos à academia? — perguntou uma delas.

— Hoje não irei — respondeu a outra — quero assistir o vídeo da Virgínia, ela vai falar sobre a separação.


Em uma das demoradas esperas na antessala de um consultório, enquanto aguardava minha vez para ser atendido, reparei em todos à minha volta: pacientes em silêncio, olhos colados às telinhas dos celulares, matando o tempo, ou sendo devorados por ele, sem perceber.


Nosso cotidiano está repleto dessas pequenas devoções: acompanhamos influenciadores como se fossem bons amigos e nos apegamos a marcas como se fossem times de futebol pelos quais torcemos. Vamos nos diluindo em bolhas, girando em torno de interesses alheios, muitas vezes empobrecedores e desinteressantes, enquanto deixamos de lado aquilo que realmente nos define e agrega valor: o pensamento crítico, a troca de conhecimento com o outro, o tempo de qualidade e a liberdade de simplesmente expressar nossas ideias.

Talvez estejamos vivendo a era da hiper atenção mal direcionada: atentos a tudo que não importa e distraídos do que realmente interessa. Nossa energia cognitiva, que poderia estar voltada à criação, ao afeto, ao estudo, à escuta sensível de quem pode dizer algo interessante, é desativada diariamente para um emaranhado de vidas e situações editadas, debates vazios e coreografias irrelevantes e repetidas. É como se aceitássemos com naturalidade sermos reduzidos a espectadores da futilidade alheia, enquanto a vida segue silenciada e afastada do que realmente importa. E o mais inquietante é que, de tanto consumir o que não tem cultura nem valores, vamos nos acostumando a achar que isso basta, que está legal, como se o raso fosse abrigo e sustento para uma alma que pede muito mais do que efêmeras aparências. Não se trata de rejeição à tecnologia; a preocupação recai sobre o uso excessivo das telas, que pode comprometer a capacidade de reflexão e racionalidade do consumidor.

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