LEI ROUANET - O acorde dissonante que obscurece a literatura
- Antônio de Paula Oliveira

- há 1 dia
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O incentivo da Lei Rouanet, sancionada pelo então presidente Fernando Collor de Mello em 1991, tinha como objetivo fomentar a cultura no país. Nasceu pura, mas ao longo do tempo percorreu caminhos tortuosos. O sonho da democratização cultural ainda é privilégio de poucos.
No ano de 1990, Fernando Collor de Mello, ou simplesmente Collor, assumiu a Presidência da República com apenas 40 anos, até então, o presidente mais jovem eleito pelo povo. De “caçador de marajás”, em Alagoas, ao Palácio do Planalto, foi um salto histórico. Collor de Mello, como era mais tratado, estampava uma imagem jovial, atlética e adepta de aventuras radicais. Representava uma nova versão de político moderno, inserido no contexto sociocultural do povo brasileiro. Era uma trajetória vangloriosa, marcada pelo glamour otimista de uma candidatura vitoriosa. Collor associou-se ao esporte, ao culto ao corpo e à juventude, apostando nessa tríade como símbolo de vigor e renovação política.
Tinha, porém, um grande desafio: combater a hiperinflação galopante e descomunal que assolava o país naquela época. Entre os planos Collor I, Collor II e o conjunto de reformas para restabelecer a economia, esbarrou em erros políticos e em um fracasso iminente. Contudo, Fernando Collor de Mello sancionou a lei que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura, denominada Lei Rouanet, Lei Federal nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Recebeu esse nome em homenagem ao então ministro da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet.
O principal objetivo da Lei de Incentivo Cultural Rouanet seria oferecer aos artistas meios de viabilizar seus projetos, livros, arquitetura, peças teatrais, música, museus, entretenimento e outros segmentos ligados à criação intelectual. De fato, muito foi realizado, como a expansão das produções cinematográficas brasileiras, a manutenção das principais orquestras e outros projetos relevantes.
Entretanto, para que um projeto cultural usufrua dos benefícios da Rouanet, não basta ser bom, é necessária visibilidade. A credibilidade do artista na mídia tornou-se fator determinante para preencher os requisitos. Um autor desconhecido tem poucas chances de obter o incentivo, já um artista consagrado encontra facilidade no processo.
A Lei Rouanet, como uma criança, nasceu pura e doce. Com o tempo, porém, foi se deturpando por meio de atitudes indignas tanto de gestores públicos quanto de proponentes de projetos milionários, turnês de cantores famosos, biografias de celebridades, fundações pertencentes a grandes redes de TV e outros empreendimentos de artistas renomados. Obviamente, seus trabalhos não são desmerecidos, mas esses projetos de alto orçamento acabam impedindo a viabilização de outras iniciativas que poderiam alcançar e valorizar o público apreciador das artes brasileiras.
A disparidade é evidente. Em 2025, segundo dados do Ministério da Cultura, o volume captado pela Rouanet alcançou R$ 765,9 milhões apenas no primeiro semestre, um recorde histórico. Contudo, a maior parte desse montante concentrou-se nas mãos de grandes produtoras e artistas consagrados. “Os grandes nomes têm estruturas e redes de patrocinadores, já os artistas periféricos e desconhecidos, mesmo aprovados, raramente conseguem levantar recursos”, observa o pesquisador cultural Marcos Pinho.
A percepção de que a Rouanet beneficia uma elite artística se agravou após escândalos como a Operação Boca Livre, deflagrada pela Polícia Federal em 2016, que revelou fraudes de cerca de R$ 180 milhões em projetos superfaturados ou desviados para eventos privados. Apesar de casos isolados, o episódio alimentou a desconfiança popular e as campanhas de desinformação e fake news nas redes sociais.
Basta conversar com pessoas ligadas à literatura para perceber que os livros ocupam o rodapé da Rouanet. Em uma conversa opinativa com o editor Toni Ramos Gonçalves, fundador da Editora Ramos, com sede em Itaúna (MG) e também em Belo Horizonte, autor de diversos livros, antologias e membro da Academia Mineira de Belas Artes, ele se mostra fervoroso ao falar sobre o tema:
“Alguns autores do Selo Editorial Ramos já pleitearam o incentivo da Rouanet, mas nenhum foi credenciado para usufruí-lo. É difícil criticar uma lei de incentivo à cultura no momento em que o Brasil vem sendo bombardeado e sufocado por um projeto político. No entanto, a Lei Rouanet não beneficia os verdadeiros autores, e sim artistas consagrados da música e das artes cênicas. Mesmo que autores tenham obras literárias de grande valor cultural, ainda assim ficam esquecidos no prelo por falta de incentivo. Esse também é um problema das editoras, que preferem apostar em nomes renomados. Os talentos estreantes, com pluralidade cultural e grande potencial, ficam impossibilitados de publicar suas obras. A lei precisa ser revista com um olhar mais atento para a literatura.”
Um grande talento musical, o belo-horizontino Flávio Penido, músico autodidata e multi-instrumentista, iniciou sua carreira ainda na adolescência. Nos palcos da Savassi, apresentou pela primeira vez sua mestria musical aos mineiros. Desde então, tem se aperfeiçoado na arte de compor e cantar. Penido possui uma versatilidade sonora única, consegue extrair das cordas metálicas uma nova roupagem para o rock dos anos 70, o folk, os Beatles, a música mineira e outros estilos. Suas canções têm métricas bem arranjadas e letras reflexivas. Cursou Jornalismo pela PUC, mas foi na arte musical que se encontrou. Sobre a Lei Rouanet, fala com certo ceticismo:
“Nunca solicitei o incentivo da Rouanet para nenhum projeto musical. Pouco sei das normativas para obtê-lo, mas seria de grande valia para expandir meu trabalho. No entanto, vários conhecidos do meio musical solicitaram e não foram contemplados. Por essa razão, percebo que a Lei Rouanet não é favorável a determinados segmentos da cultura.”
O atual governo admite as falhas e vem buscando descentralizar o acesso aos recursos. A ministra da Cultura, Margareth Menezes, afirmou que a meta é fortalecer projetos das regiões Norte e Nordeste e ampliar a participação de coletivos culturais e artistas da periferia. Novas portarias do Ministério da Cultura simplificaram etapas para projetos de pequeno porte, a fim de contemplar os artistas que mais necessitam de suporte para levar sua arte aos brasileiros.




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