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O sorriso das ruas

Vendedor de rua. Malabarista de semáforo, controlador de veículos
Vendedor de rua. Malabarista de semáforo, controlador de veículos

Domingo de manhã, pegamos o carro apenas para ir ao supermercado, com a velha desculpa de ser “rápido”: poucas compras, nada que demorasse. No fundo, a pressa não passava de um truque nosso, a ilusão de ganhar tempo para, afinal, não fazer nada.


— Estacione na lateral do prédio, vai ser mais rápido, querido — decretou Lina, com a autoridade de quem já sabe que supermercado nunca é rápido.


Entrei apressado em uma vaga disponível, ou melhor, duas vagas. O carro ficou meio atravessado, despretensioso e desatento, como quem não deve nada a ninguém. Fui descendo do carro.


— Vai usar as duas vagas, doutor?


Olhei à frente. Lá estava um senhor de colete improvisado, daqueles que usam para se identificarem como organizadores de estacionamento. Não tinha apito, nem crachá, nem CLT. Havia apenas aquele jeito de vigiar carros com os olhos e memorizar muito bem quando retornamos ao veículo.


Foi quando ele abriu um sorriso largo, daqueles que anulam palavras atravessadas e deixam apenas o riso no ar. Um sorriso que iluminou o rosto moreno, clareando até os cabelos que o tempo já salpicava de reflexos. O sorriso me pegou de surpresa, me tirando qualquer reação que não fosse abaixar a guarda e aceitar, de bom grado, aquela sutil correção. Olhei para os lados, o carro realmente estava atravessado.


Ele então completou, com voz mansa:


E eu entendi. Ali, no meio do asfalto quente do estacionamento do supermercado, a vida se fazia num acorde simples, eu ajeitava o carro, ele ajeitava meu humor. Afinal, era domingo, dia de preguiça e alegria.


E não é só ele. A cidade é cheia desses vigias, vendedores e artistas que transformam a pressa dos outros em seu ganha-pão. Cada um com seu jeito, cada qual com sua marca, tem quem rege o trânsito com apito desafinado, a senhora de lenço desbotado pelo sol que parece abençoar os carros ao passar a mão no capô, o rapaz que vira malabarista sobre um monociclo, jogando argolas, o tocador de flauta e o cantor que dedilha a viola e solta a voz entoando canções caipiras. Dizem que um famoso artista do show business cantou durante algum tempo nos semáforos, se apresentando à noite.


A faixa de asfalto, debaixo dos semáforos, é palco de muitos anônimos. Ali, de dia e de noite, desfilam personagens que a pressa dos motoristas mal enxerga. Alguns apresentam números de malabarismo, outros vendem produtos simples por trocadinhos. Talvez estejam ali por necessidade, exclusão ou simplesmente pela teimosia de sobreviver. Vendedores, malabaristas, cantores e pedintes vendem esperança por um mísero trocado. Os pedintes estendem as mãos e, silenciosamente, carregam o olhar entristecido. Cada um inventa uma forma de transformar segundos vermelhos em moedas, expondo dignidade em meio às buzinas.


Enquanto os carros aceleram no verde, eles permanecem, donos de um palco efêmero, artistas invisíveis que a cidade teima em esquecer. Mas, para quem olha com calma, há beleza no gesto, súplica no olhar, resistência no corpo cansado, esperança até na mão que se estende ou no sorriso que se abre enquanto dura o sinal vermelho.


Homens, mulheres e crianças ocupam os cruzamentos, sem amparo nem direitos, quase sempre invisíveis para a cidade apressada. Sustentam-se na luta diária, enfrentando a vida como quem dribla o impossível. Cada dia traz riscos, mas também coragem de recomeçar. A esperança surge no instante breve de um sinal fechado, no gesto de uma janela que se abre, ainda que apenas para ofertar um olhar de humanidade.

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