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As balas que calaram o sonho


Por Valter Gonçalves Amaral e Heli de Souza Maia*

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É uma sina triste, daquelas contadas em cordel e vendidas nas pequenas feiras de cidades igualmente pequenas do Nordeste — valente e resistente aos inúmeros desatinos que a natureza e os homens lhe impõem.


Imagina: um jovem ainda na menoridade, antes de completar dezoito anos, acalenta um sonho tão comum a tantas crianças e adolescentes espalhados por esse Brasilsão tão maltratado.


Jeferson queria ser jogador de futebol, mas a sorte não lhe sorria. O sustento vinha de carregar e descarregar caminhões — serviço braçal que exigia muita energia, e que a alimentação parca, decerto, não lhe fornecia.


Na mãe viúva encontrava o esteio da própria existência. E, nas noites mal dormidas, ainda havia tempo para transformar em realidade o que tanto almejava. Com os primeiros raios de sol, sumiam as comemorações de tantos gols sonhados.


A fortaleza simbolizada pela genitora, no entanto, não suportou por muito tempo as agruras da vida — e desmoronou. Com sua queda, o futuro atleta viu-se tão só, mesmo entre outros familiares, que tomou uma decisão.


Como tantos Severinos, pegou destino para São Paulo, onde se enfurnou em uma pizzaria com a esperança de ressuscitar o antigo projeto de ser reconhecido no meio futebolístico.


Mas o destino foi outro. Demissão. Encontro com as drogas e com as ruas — frias de temperatura e de calor humano.


Sem bola e sem emprego, encontrava nos momentos fugidios proporcionados pelos entorpecentes a fuga das amarguras da vida.


Mas, vez ou outra, conseguia ligar para a terra natal e avisar que “essa vida queria deixar”.


E deixou.


No dia 23 de junho, à noite, deixou o sonho da bola, pois as balas de fuzil o encontraram. Estava sob um viaduto em São Paulo quando uma ronda da Polícia Militar o abordou.


Foram três tiros à queima-roupa. A câmera corporal de um dos policiais foi cristalina, mesmo na penumbra. Não houve reação que justificasse a morte, embora, posteriormente, os policiais buscassem fundamentação para ato tão torpe.


Das câmeras corporais emergem as dramáticas cenas.

As imagens mostram que ele não faz movimentos bruscos no momento em que é alvejado, colocando as mãos à frente do corpo lentamente. Vinte segundos antes de ser atingido, estava com as mãos na cabeça, de costas para os policiais. Às 21h24, quando Jeferson está sob a mira do fuzil, fica nítido que ele chora enquanto tenta conversar com os PMs. Ele morreria um minuto depois.


Enzo de Almeida Carrara Boncompagni é o promotor responsável pelo caso. São dele as seguintes palavras:

“É certo que os denunciados Alan Wallace e Danilo, policiais militares no exercício de suas funções, agiram impelidos por motivo torpe, deliberando matar o suspeito por mero sadismo e de modo a revelar absoluto desprezo pelo ser humano e pela condição da vítima, pessoa em situação de vulnerabilidade social.”

Carlos Drummond de Andrade, em contexto tão distante no tempo e no espaço, escreveu:


“E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou.Você está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode.A noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia.Tudo acabou, tudo fugiu. Sozinho no escuro, qual bicho-do-mato, sem parede nua para se encostar,sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José. José, para onde?”


E agora, Jeferson?


E agora, todos que vão se acostumando com a naturalização e normalização da violência?


Mas, como escreveu Carlos Rodrigues Brandão, dando voz à sabedoria de um camponês:"É preciso encontrar saídas onde não existem portas."


Em tempo: Este texto foi inspirado em matéria do jornal Folha de S. Paulo, publicada em 7 de agosto de 2025.


* Valter Amaral - Graduado em Direito pela Universidade de Itaúna; Pós Graduado em Direito Processual Penal, Direito Tributário e MBA em Gestão Pública; Conselheiro Fiscal e Administrativo da Sicoob Centro-oeste, dos períodos 1998/2011; Diretor do SINE, dos períodos 2009/2011; Assessor Jurídico de Gabinete de Dep. Estadual Assembleia de MG, dos períodos 2013/2019; Chefe de Gabinete do Município de Itaúna/MG, dos períodos de 2017/2020; Secretário Municipal de Finanças de Itaúna, dos períodos 2017/2024; atual Diretor Jurídico da Cooperativa de Carga de Itaúna desde 2012; atual Secretário Ad. de Fazenda de Brumadinho; Conselheiro da Ativos S/A de Brumadinho, desde 01//01/2025.


Heli de Souza Maia foi diretor do IMP – Instituto Municipal da Previdência, ex-secretário de Educação e Cultura, de Assistência Social e de Assuntos Comunitários. É professor da rede pública e privada e advogado. Mestre em Direito, Pós-graduado em História, Graduado em Direito e em Ciências Sociais. É autor dos livros Bullying e Atividade empresária e sustentabilidade ambiental. Tem extensa participação em seminários, cursos e congressos sobre previdência pública.


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