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A Máquina Pública entre o Legado e a Emergência

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A máquina pública pode ser lida como um imenso sistema legado (software desatualizado, mas ainda em uso numa organização). Assim como no software, ela se formou em camadas, acumulando regras, órgãos, ritos e exceções, todos depositados ao longo do tempo como sedimentos de uma civilização que nunca para de legislar sobre si mesma. Cada decreto é um remendo, cada emenda uma linha de código adicionada sem revisar o núcleo. O resultado é um organismo pesado, redundante, que se move devagar e custa caro para manter.


Mas reduzir o Estado a uma máquina enferrujada seria injusto. Há nele também uma dimensão viva, pulsante, que Steven Johnson chama de emergência. Em seu livro Emergência: A dinâmica de rede em formigas, cérebros, cidades e softwares, Johnson mostra como sistemas complexos — formigueiros, metrópoles, redes digitais — produzem inteligência sem depender de um centro de comando. O todo surge das partes, do entrechoque de pequenas ações locais que, em conjunto, criam padrões inesperados.


É exatamente isso que vemos no funcionamento cotidiano da burocracia. A lei escrita em um gabinete encontra o servidor que a interpreta na fila de atendimento, que por sua vez encontra o cidadão que descobre brechas, que encontra o juiz que estabelece uma jurisprudência. Nenhum deles governa sozinho o sistema; todos participam de uma rede de interações que, no acúmulo, gera algo maior do que a soma das partes. A máquina pública é, ao mesmo tempo, legado sedimentado e emergência incessante.


O problema aparece quando o legado se sobrepõe à emergência, quando a herança pesa mais do que a vida. É o momento em que a burocracia deixa de ser uma inteligência coletiva e se converte num labirinto opaco, incapaz de responder às necessidades que ela mesma deveria servir. O Estado, então, parece mais com um programa mal documentado, em que só alguns iniciados sabem navegar.


Talvez por isso revoluções políticas se pareçam tanto com grandes refatorações: são tentativas desesperadas de reescrever o sistema quando o acúmulo de remendos torna insuportável o simples ato de mantê-lo funcionando. Às vezes, é preciso parar de remendar e começar de novo.

Essa tensão entre legado e emergência é, afinal, o coração da civilização. Criamos abstrações — leis, códigos, softwares, moedas — para domar a complexidade, mas, ao mesmo tempo, essas abstrações geram novas dinâmicas que não controlamos. Somos, todos nós, habitantes de sistemas legados que continuam emergindo.


Talvez a grande questão não seja apenas “como consertar a máquina”, mas como manter vivo o espaço da emergência dentro dela. Como permitir que o inesperado, o criativo e o coletivo floresçam sem que o peso da herança os esmague. Nesse jogo delicado entre camadas herdadas e dinâmicas vivas, a sociedade escreve o seu próprio código — sempre antigo, sempre novo.

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