Numa manhã de outono, numa rua dessas onde passo cotidianamente, um vendedor me chamou a atenção. Cesto no braço contendo pequenos produtos, envoltos em papel laminado. Ele trajava roupas do dia-a-dia, e com um sorriso de comerciante bradava aos quatro cantos: "quem me compra este pedaço de carne?"
Estranhei tal oferta e o contexto da rua, mas atrasado das horas não dei confiança e segui meu caminho rumo ao ordinário na vida.
Dias depois, voltando do trabalho, no cair da noite, ouço novamente aquele vendedor: "quem me compra este pedaço de carne?" Dobrei a esquina e lá estava ele, um ambulante a oferecer pertences.
Curioso, percebi o movimento e vi que os clientes apareciam de todos os lados. Pessoas de várias classes sociais, raças, gêneros e etnias disputavam as iguarias oferecidas.
- Nessa mão tenho um par de olhos azuis! Quem vai querer?
- Dou desconto no nariz perfeito, pois está vencido e fora do padrão.
- Peitos durinhos e sem silicone! Dou-he uma, dou-lhe duas, dou-lhe três, vendido!
Por alguns segundos pensei estar morto, presenciando aquele mercado de órgãos ao ar livre e com completa naturalidade e legalidade. Pensando se tratar de uma pegadinha de algum programa de TV, me aproximei e entrei na brincadeira. Minha mãe adora TV, era uma oportunidade real de eu aparecer na telinha e quem sabe até mandar um beijo pra ela.
- Quero um coração, tem?
O vendedor ficou mudo e as pessoas em volta me olharam espantadas...
- Coração saiu de linha, respondeu o vendedor.
Ainda entusiasmado com a possibilidade de aparecer na TV, investi naquele jogo teatral.
- É mesmo? Então, me vê a carne que substitua esse órgão.
-Temos bunda, coxa, peitoral, bíceps, panturrilha, bumbum durinho, e boca da Barbie ou se preferir, do Ken.
O jogo foi instaurado e eu me senti confiante com meus argumentos, indaguei então ao vendedor:
- Mas as pessoas estão andando com uma bunda dentro do peito?
Irritado, o ambulante me interpelou de forma grosseira.
- Aqui, não tem conversa fiada, cidadão. É pegar ou largar. Vendo carne e não prosa ruim.
Percebi que eu havia perturbado a ordem. Na verdade, algo que já faço com frequência, a título de sobrevivência.
Não fugi ao combate. Repliquei e trepliquei...
- Não disse que eu queria fiado. Trabalho. Inclusive, trabalho além do querer. Então, vende pra mim, à vista, 1500 gramas de massa encefálica, no peso aproximado de um cérebro de um adulto, certo?
Nessa altura do campeonato, os clientes já haviam adquirido as carnes e só restava um embrulho no cesto. Foi quando o vendedor baixou o tom e, surrando, disse-me ao pé-do-ouvido:
- Não vendo o que as pessoas necessitam e sim o que elas desejam. O senhor parece ser um daqueles tipos caretas sentimentais e utópicos. Aposto que não teria coragem de descartar sua mão esquerda e trocá-lapor um umbigo virgem. Não atrapalhe o andamento do meus negócios. Busque coração e mente nas bancas dos poetas e romancistas.
Na sequência, desenrolou o último pacote que havia no cesto, revelando uma vulva, já madura.
- Vendo carne, quer comprar?
A realidade de tal fato, associada ao órgão ainda fresco, perfurou meus neurônios e ampliou os meus sentidos. Não era uma pegadinha. Olhei à minha volta e tudo começou a girar. Daí pra frente, memória curta.
Acordei assustado, com o corpo molhado de suor. Minha primeira reação foi procurar pela mão esquerda, mão do coração, para ter certeza que não havia um umbigo em seu lugar.
Atrasado para o trabalho, acelerei os processos, saí sem café. Na esquina, esperando o ônibus, meus ouvidos, trouxeram as imagens do pesadelo.
- Pode chegar cliente, o preço da carne baixou? Quem quer comprar?
Girei a cabeça bruscamente sobressaltado e só tranquilizei meu coração quando me deparei com o letreiro do açougue, que fica em frente ao ponto de ônibus - "Açougue da Gente".
Siga em reflexão eu por aqui fico em Divagações.
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