Uma das lembranças engraçadas que tenho das missões da Semana Santa é a fala de um padre estrangeiro que veio auxiliar nas celebrações em São Tiago, cidade onde eu fazia estágio como seminarista, naquele ano. Ele estava no Brasil havia pouco tempo,não dominava ainda o uso da língua, assim apresentava um pouco de insegurança na pronúncia de algumas palavras.
Durante a leitura da narrativa da Paixão de Jesus, na celebração das três da tarde da Sexta-feira Santa, coube a esse padre a leitura das palavras de Jesus. Tudo transcorria normalmente, embora ele se mostrasse bastante apreensivo, com receio de errar alguma pronúncia. Talvez por isso, quase no final da proclamação do texto, ao ler uma das últimas palavras de Cristo na cruz: “Tudo está consumado” (Jo 19,30), ele pronunciou em alto e bom som: “Tudo está consumido”.
O momento era de contrição e piedade, afinal quem não se comove diante da narrativa da Paixão de Jesus? Esse pequeno deslize linguístico provocou algumas tímidas risadas. Sem querer, o leitor mudara completamente o sentido da fala de Jesus. Essa troca de palavras não é motivo para tímido riso, apesar de na hora soar engraçado. Pelo contrário, ela nos leva a uma profunda reflexão. O que a alteração de uma letra “a” por uma letra “i” pode acarretar numa palavra? Qual a diferença entre consumado e consumido?
De acordo com os dicionários, a palavra “consumado” vem do verbo “consumar”, que significa “completar, acabar, concluir, arrematar”. Já, “consumir”, significa “fazer desaparecer pelo uso ou gasto” ou numa só palavra: gastar.
Desse modo, consumir é algo que desgasta, que cansa, que pesa. Vivemos numa sociedade do consumo. A todo momento,estamos consumindo. Consumimos objetos, informações, tempo, dinheiro, entre outras coisas. O verbo consumir leva a pensar em quantidade, em lucros. E, quanto mais consumimos, menos felizes e satisfeitos ficamos. Queremos ter, comprar, acumular, descartar e comprar de novo... Por fim, pelo consumo, temos tudo e, ao mesmo tempo, não temos nada.
Cristo não consumiu a sua vida, mas a consumou no amor. Na cruz, ele não possuía nada; mas, ao mesmo tempo, tinha tudo. Na consumação de sua vida, Cristo na cruz dá o arremate de tudo aquilo que havia falado, feito e ensinado.
Os arremates são importantíssimos numa obra. São sempre os detalhes finais que fazem toda a diferença. Pensando no amor de Cristo, consumado na cruz, reflitamos sobre as nossas atitudes ao longo de nossa travessia cristã.
Esse amor consumado nos ensina sobre a importância dos arremates. O pedreiro, com todo esmero, constrói cada obra para que o acabamento final seja perfeito; a costureira, com paciência,finaliza aquele pequeno detalhe de uma roupa para realçar a beleza de seu trabalho; ou ainda, o cozinheiro, com toda habilidade, sabe que o sabor inigualável do prato depende daquele toque final.
O que temos feito para consumar a nossa vida nos lugares onde vivemos, com as pessoas com quem convivemos? Consumar a vida no amor nos desafia a descobrir que é sempre possível fazer algo a mais.
Há uma canção católica bastante conhecida que diz: “Só por ti, Jesus, quero me consumir; como vela que queima no altar, me consumir de amor. Só por ti, Jesus, quero me derramar; como o riose entrega ao mar, me derramar de amor”.
Os verbos consumir-se e derramar-se presentes nessa música, assim mesmo no reflexivo, foram utilizados com o sentido de consumar. Consumir-se é diferente de consumir algo. A missão da vela só se realiza, se consome, se ela for consumida, se ela se gastar, se desgastar. Da mesma forma, o rio se consome ao longo do seu curso para se se derramar no mar; neste está suaconsumação.
Consumar a vida no amor é o grande desafio que Jesus nos propõe para viver. E consumar a vida no amor é consumir-se por amor. No caso de Jesus, poderíamos dizer que a consumação de sua obra, conforme lemos no Evangelho de João, foi um eterno consumir-se por amor, um eterno derramamento de si no amor, sem reservar nada de sua própria vida para si. Ele se consumiu de amor.
Somente o amor é capaz de nos fazer entender a grandiosidade dessa atitude de Jesus. Nesse arremate consumado no calvário, nós conseguimos vislumbrar tudo o que Jesus viveu ao longo de sua vida. Que sejamos capazes desses pequenos gestos, pequenos arremates, pois é aí que mora o capricho e o zelo fundamentais para a realização de grandes transformações.
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