O olhar do papa Leão, a luz de Santo Agostinho e o legado de Francisco
- Alisson Diego
- há 3 dias
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Atualizado: há 3 dias

Estadunidense, missionário no Peru e agostiniano, o novo Papa cita Francisco diversas vezes em sua primeira fala e escolhe o nome de Leão XIV. Um gesto que sinaliza continuidade, mas que terá marcas próprias.
O novo Papa é estadunidense, viveu a missão no Peru (onde se naturalizou e se tornou cardeal), é agostiniano (formado pela espiritualidade inquieta e intelectual de Santo Agostinho, dos mais importantes doutores da Igreja) e escolheu, com clareza teológica e política, o nome Leão XIV. Em sua primeira fala pública, citou o Papa Francisco nada menos que onze vezes (se não contei errado) e falou de pontes, de ser uma igreja sinodal. Sinais muito importantes. O que significam essas escolhas? O que nos diz esse início de pontificado?
Significa, em primeiro lugar, que ele se vê como um inequívoco sucessor de Francisco. Ao fazer referência direta ao pontífice argentino ele sinaliza continuidade. Poderia ter optado por um discurso mais genérico e institucional, mas preferiu nomear Francisco, reiterar suas ideias, usar suas palavras. Isso quer dizer muito. Quer dizer que os ventos da Igreja de Francisco, mais aberta, mais voltada para os pobres e mais sinodal, continuam soprando com força em Roma.
Segundo: sua experiência no Peru é parte central da sua formação e espiritualidade. O novo Papa viveu a missão na América Latina, conviveu com o povo simples, com comunidades eclesiais, com a teologia feita com os pés descalços no chão da história. Em sua primeira bênção, saudou a sua diocese peruana Chiclayo em espanhol — e não fez menção aos Estados Unidos, sua pátria. Isso é profundamente simbólico. Escolheu olhar primeiro para o Sul, gesto político, pastoral e evangélico.

O nome Leão XIV evoca Leão XIII, o autor da Rerum Novarum, pai da Doutrina Social da Igreja. Foi Leão XIII quem, ainda no século XIX, afirmou o direito dos operários, denunciou a exploração, defendeu o salário justo e o papel regulador do Estado. Criticou duramente o capitalismo desumano pós revolução Industrial. A doutrina social é dos mais importantes documentos católicos. Ao escolher esse nome, o novo Papa sinaliza um retorno às raízes de uma Igreja comprometida com a justiça social e a dignidade humana - raizes que possibilitaram, inclusive, a eleição de um papa como Francisco.
Poucos dias depois de eu ter sido eleito prefeito de Itaguara, em outubro de 2008, lembro-me como se fosse hoje, recebi um presente de dona Maria Geralda Costa, destacada líder católica itaguarense, mulher de muita luz, atuante na Pastoral da Criança, com presença marcante na nossa paróquia de Nossa Senhora das Dores e na vida da Diocese de Oliveira. Ela me levou um exemplar da Doutrina Social da Igreja, da editora Paulinas. Li com atenção naquele mesmo dia.
A Rerum Novarum e tudo o que ela representa me marcaram muito. Com dona Maria Geralda conversei depois sobre esse conteúdo, sobre a missão política e a fé cristã. Havia compreendido com mais clareza que a fé precisa gerar compromisso com a justiça. Que a mensagem do Evangelho é a construção do Reino de Deus também aqui, na Terra. Como lembra Frei Betto: no Pai Nosso dizemos “venha a nós o vosso Reino”, não “levai-nos ao vosso Reino”. Isto é, não se trata de esperar pela fraternidade apenas no Céu, mas de buscá-la no agora, com escolhas, ações e políticas que reflitam o amor de Deus.
Leão XIII marcou profundamente a Igreja e a humanidade e Leão XIV tem tudo para fazê-lo também. A escolha do colégio cardinalício se alinha perfeitamente com a obra de Francisco. O Papa argentino foi o Papa da Fratelli Tutti, da Laudato Si’, da crítica ferrenha ao neoliberalismo, do sínodo amazônico. E Leão XIV caminha nesse mesmo compasso. Reforçou a ideia de uma “Igreja sinodal”, que escuta, que caminha junto. Falou de “pontes”, exatamente como Francisco repetia em quase toda viagem apostólica. E disse mais: que a Igreja deve ser uma “servidora da reconciliação e da esperança”. É a continuidade do mesmo horizonte evangélico.
O novo Papa é da Ordem de Santo Agostinho. Isso também importa muito. Agostinho é o mestre da interioridade, o inquieto de Hipona, o que escreveu que “nos fizeste para Ti, Senhor, e o nosso coração anda inquieto enquanto não repousa em Ti”. É também o que entendeu que o pecado não é só pessoal, é também estrutural. É o autor da Cidade de Deus e nos ensina que a verdadeira justiça não se confunde com o poder mundano. Um Papa agostiniano deve carregar esta dupla chama: o rigor do pensamento e o ardor do coração. Doutor da Igreja, mas servo de Deus e missionário ao lado do povo.
Agostinho dizia que a esperança tem duas filhas: a indignação e a coragem. Leão XIV parece querer ser o pastor dessas duas virtudes. Indignado com a indiferença do mundo, com a desigualdade, com a exclusão. Corajoso para não se acomodar. Corajoso para tocar nas feridas, para enfrentar os desafios éticos e ecológicos do nosso tempo.
Confissões, de Santo Agostinho, é, para mim, uma das mais belas obras literárias (além de teológica). Trata-se de um mergulho íntimo, inquieto, luminoso. Sempre volto a ela quando preciso reencontrar o meu eixo. Agostinho escreve com as entranhas da alma. Ele não fala de Deus em tom doutoral e excessivamente explicativo, escreve como quem busca encontrar Deus no cotidiano, na natureza e até na dúvida. “Fizeste-nos para Ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti.” Essa frase nos atravessa humanamente e nos conecta com o divino; diz tudo sobre o humano. Sobre a nossa sede de sentido. Em outra passagem, ele clama: “Eis que estavas dentro de mim, e eu fora, e por fora te buscava… e me lançava, disforme como era, sobre as coisas formosas que criaste.” É uma dor e uma beleza humanas demais. Porque somos assim: muitas vezes distantes e distraídos, todavia, Deus nos habita. É no mais íntimo que Ele se revela.
Em Confissões, Agostinho também diz: “Tu eras mais íntimo a mim do que o mais íntimo meu.” Interioridade radical que me comove. Um Deus que não está nas alturas inacessíveis, mas na consciência, na memória, na natureza, na dor do irmão que sofre, no dia a dia, no abraço, no afeto. Isso molda uma espiritualidade que é também responsabilidade. Porque quem se encontra com o Amor não pode permanecer indiferente.
A eleição de um Papa agostiniano me toca muito e lembra que a Igreja deve ser, antes de tudo, casa de escuta, de verdade, de encontro entre a fé e o intelecto, do sensível e do abstrato, do amor e da dor, da alegria e da infelicidade, o lar da humanidade inteira nos preceitos de Jesus. Agostinho foi um peregrino do espírito e Leão XIV pode ser um condutor da alma coletiva, alguém que conhece o abismo e a graça, e que pode guiar com humildade os passos da Igreja entre a fragilidade e a esperança.
Houve ainda um detalhe que me chamou a atenção. Por entre os óculos do novo pontífice, conseguimos ver nitidamente, talvez pela primeira vez com tamanha nitidez, o seu olhar. As câmeras modernas captaram uma expressão que dizia mais que quaisquer palavras. Olhar emocionado. Quase chorando, mas contido, um misto de ternura e firmeza. Um olhar pastoral que parecia carregar as dores e emoções do mundo. Um olhar de quem sabe que será farol, e que, por isso mesmo, precisa manter acesa a chama da esperança. Vi ali um Papa que se emociona, crê e ama. Um Papa que olha com humanidade para uma humanidade tão ferida. Bonito e comovente.
Como católico, estou profundamente feliz com a eleição deste novo Papa. Ele não chega para retroceder, nem para agradar a todos. Chega com o Evangelho nas mãos, o legado de Francisco nos olhos e Santo Agostinho no coração. Chega com memória e com futuro. Com herança e com visão. Que venha Leão XIV. Que venha com a coragem dos santos, a sabedoria dos mestres e o perfume da justiça.
Um Papa já identificado com uma linha humanitária, realmente cristã como manda os protocolos dos ensinamentos de Cristo. Uma pena que está fora de moda a humanidade na era digital, onde cristãos apoiam o holocausto palestino, onde a fome do irmão é intitulada que "está assim porque quer" e aqueles que ajudam e pensam de forma progressista e para uma união de equidade, são intitulados como "comunistas", no sentido pejorativo, se é que existe.
Podemos pintar o Papa que for, mas se Cristo retornasse hoje, os próprios religiosos em maioria, iriam perseguido e crucifica-lo. Ademais, quantos "cristos" crucificados em nossa existência? Quantas vezes julgamos o irmão flagelado, o preso, o negro, o sem teto e toda minoria discriminada?
Seria válido…