Cinco faróis que se apagam, uma luz que permanece
- Alisson Diego
- 24 de mai.
- 8 min de leitura

A partida de Papa Francisco, José Mujica, Evanildo Bechara, Alasdair MacIntyre e Sebastião Salgado em tão breve intervalo representa uma sucessão de lastimáveis perdas biográficas; expressão trágica de um esgotamento simbólico, intelectual e ético. Cada um, à sua maneira, desenhou os contornos de uma possibilidade humana que hoje se vê ameaçada pela lógica da barbárie, do individualismo e da destruição ecológica.
Aparentemente, são figuras que nada têm a ver umas com as outras — um papa, um presidente, um filósofo, um fotógrafo, um filólogo —, mas todas, cada uma a seu modo, transformaram o mundo ao se recusarem ao conformismo, mostrando que a inteligência, a ética e a beleza ainda podem ser forças de resistência contra a banalidade e a destruição.
Alguém poderia ponderar: “Ah, mas eles não eram tão jovens...”. De fato, não eram. Francisco faleceu aos 88 anos; Mujica, aos 89; MacIntyre, aos 95; Salgado, aos 81; Bechara, aos 95. Mas essa é uma objeção apenas aparente, superficial. A questão não é a idade biológica, mas a vitalidade ética, política e intelectual que cada um deles ainda irradiava.
Todos seguiram ativos, lúcidos e combativos praticamente até o fim, recusando a apatia que tantas vezes o tempo impõe. Não foram testemunhas passivas de seu tempo: foram sujeitos que o transformaram, que desafiaram o conformismo e, sobretudo, que recusaram a ideia de que no mundo não há muito espaço para transformação.
De Papa Francisco não falarei novamente aqui, porque já escrevi um artigo exclusivo sobre sua partida, publicado neste mesmo espaço, intitulado “Francisco: a voz do Sul e dos silenciados”. Para quem quiser, o texto pode ser lido na íntegra em: https://www.sagarananoticias.com.br/post/francisco-a-voz-do-sul-e-dos-silenciados.
Começo por José "Pepe" Mujica, falecido no dia 13. O homem que transformou a política em um exercício de coerência ética e estética da simplicidade. Sua trajetória, do cárcere como militante tupamaro ao Palácio Presidencial uruguaio, foi marcada por uma fidelidade singular aos seus princípios e, ao mesmo tempo, uma capacidade raríssima de aperfeiçoar o olhar, amadurecer as ideias e compreender o mundo holisticamente. Mujica não foi apenas um político; foi um estadista no sentido mais pleno do termo: alguém que compreendeu a política como responsabilidade pública universal e a exerceu com uma integridade rara.
Durante seu mandato como presidente do Uruguai (2010-2015), promoveu políticas sociais de grande impacto, ampliando direitos, consolidando a democracia e posicionando seu país como referência mundial em temas como legalização da maconha, direitos das mulheres e das populações LGBTQIA+. Gestão pautada pela coerência entre suas ideias e seu modo de vida: rejeitou as pompas do cargo, doou boa parte de seu salário, cultivou sua chácara e seu velho Fusca, vivendo como falava, falando como vivia.
Inesquecível a sua célebre intervenção durante a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável — a Rio+20, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 2012:
“Quando eu compro algo, ou você, não compramos com dinheiro. Compramos com o tempo de vida que tivemos que gastar para ter esse dinheiro. O tempo de vida que se foi. E a única coisa que não se pode comprar é a vida. A vida se gasta. Ser mais feliz com menos é o caminho.”
Mujica ousou propor a política como um espaço de virtude e não de espetáculo; de serviço e não de mercado; de coerência e não de cálculo. Sua morte nos deixa órfãos de um modelo político que parecia já em vias de extinção: o da política como ética pública, despojada de interesses privados — e, sobretudo, como prática inseparável de um modo de vida simples, austero e comprometido com o bem comum.
Alasdair MacIntyre, um dos maiores filósofos morais de nossa era, partiu dia 23 de maio deixando um legado monumental de reflexão sobre as virtudes, a tradição e a necessidade de reconstrução do sentido ético na vida moderna. Em After Virtue (1981), MacIntyre denunciou a falência da ética liberal moderna, marcada pela fragmentação, pela arbitrariedade e pelo niilismo. Sua obra, densa e rigorosa, constituiu um divisor de águas na filosofia moral contemporânea, recolocando a questão da virtude e da comunidade como elementos centrais para a vida ética.
Sua defesa da retomada das tradições éticas — em especial a aristotélica e a tomista — não representou uma restauração nostálgica, mas uma proposta radical de superação do individualismo atomizado que domina as sociedades contemporâneas. Para MacIntyre, as virtudes são práticas sociais compartilhadas, não escolhas privadas; a vida boa é uma vida enraizada na comunidade, não uma busca solipsista de preferências. Ele nos ensinou que, sem uma tradição que oriente a prática e a interpretação das virtudes, o discurso moral se torna incoerente, fragmentado e, no limite, vazio.
Em tempos em que a filosofia frequentemente se rende ao tecnicismo ou ao narcisismo acadêmico, MacIntyre nos lembra que pensar é, antes de tudo, um ato de responsabilidade social. Sua filosofia é um convite a uma vida ética concreta, situada, atenta às práticas e instituições que moldam o caráter e a ação humana. Sua morte deixa a filosofia órfã de um mestre que ousou desafiar os fundamentos frágeis da modernidade, insistindo na possibilidade — e na necessidade — de uma vida virtuosa enraizada na comunidade.
Foi ainda nas aulas da professora Telma Birchal, na FAFICH (UFMG), há mais de uma década, que tomei meu primeiro contato com o pensamento de MacIntyre. Lembro-me vivamente do impacto que sua obra me causou: uma filosofia rigorosa, mas enraizada na vida; crítica, nunca cínica; clássica, mas não presa ao conservadorismo tacanho. MacIntyre tornou-se uma referência constante, especialmente no modo como penso a articulação entre ética, política e tradição.
No mesmo dia em que partiu Alasdair MacIntyre, também se foi o grandioso Sebastião Salgado — mineiro de Aimorés, fotógrafo do mundo, um dos maiores nomes do fotojornalismo de todos os tempos.
Salgado elevou a fotografia à condição de testemunho ético da humanidade. Uma obra atravessada por um compromisso radical: documentar a dignidade dos que sofrem e denunciar, com lirismo e rigor, as violências estruturais do sistema econômico e social que rege o planeta.
Como ele mesmo afirmou:
“Para fotografar um leão, uma formiga, uma baleia, temos de aceitar o animal, tentar compreender a dignidade desse animal, a sua personalidade e respeitar o seu território, tal como acontece ao fotografar as pessoas.”
Outra frase linda dele revela a inseparabilidade de nosso terroir mineiro:
“Fotografamos com o que herdamos. A minha herança são os meus pais, a terra onde nasci, a influência das primeiras luzes que entraram no meu sistema sensitivo, a sociedade de onde venho, toda a filosofia e ideologia que carrego.”
Sua fotografia não é somente resultado da técnica: é também memória, é cultura, é a inscrição sensível da sua biografia nas imagens que produziu.
Não posso deixar de registrar que "conheci" Sebastião Salgado ainda em 2003, nas aulas da Faculdade de Jornalismo. Foi nesse contexto que tive o primeiro contato mais sistemático com a profundidade do seu trabalho e com a força estética e política de suas imagens. Anos depois, tive a oportunidade marcante de ir à primeira exposição de suas fotos que visitei, no Memorial Minas Gerais, em 2008, salvo engano, apresentado pelo amigo Tatá Lobo, brilhante fotógrafo e companheiro de ideologias. Encontro com a obra de Salgado e confirmação, sensível e estética, do poder que a fotografia possui de ser também denúncia e esperança.
Seus registros atravessaram mais de 100 países, documentando trabalhadores, migrantes, refugiados, povos originários e ecossistemas ameaçados. Obras como Trabalhadores, Êxodos e Gênesis são, simultaneamente, arquivos históricos e monumentos estéticos. Sua fotografia em preto e branco, de forte contraste, compõe uma gramática visual única.
Salgado não foi apenas um artista da imagem: foi também um militante da vida. Em 1998, ele e sua esposa, Lélia Wanick Salgado, tomaram uma decisão: reflorestar a Fazenda Bulcão, em Aimorés, Minas Gerais, propriedade de sua família há gerações. Esse gesto deu início a um belíssimo processo de restauração ecológica: foram plantadas aproximadamente 2,7 milhões de árvores, recuperando cerca de 600 hectares de floresta. A área, antes desértica, transformou-se em mata fechada, um refúgio de vida silvestre, abrigando centenas de espécies nativas, muitas delas ameaçadas de extinção. Esse processo inspirou a criação do Instituto Terra, ONG fundada pelo casal, que passou a ser referência em restauração ecossistêmica e desenvolvimento rural sustentável.
No perfil oficial da organização, após sua morte, foi publicada a seguinte homenagem:
“Sebastião foi muito mais do que um dos maiores fotógrafos de nosso tempo. Ao lado de sua companheira de vida, Lélia Deluiz Wanick Salgado, semeou esperança onde havia devastação e fez florescer a ideia de que a restauração ambiental é também um gesto profundo de amor pela humanidade. Sua lente revelou o mundo e suas contradições; sua vida, o poder da ação transformadora.”
A Fazenda Bulcão adquiriu o status de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). “É um modelo, é um piloto para o Brasil, e eu diria que talvez seja um piloto para o mundo. O que nós fizemos no Instituto Terra tem que ser feito em todas as partes do Brasil”, afirmou Salgado ao Jornal Nacional, em 2021.
O impacto do projeto ultrapassou o reflorestamento: promoveu também a recuperação de nascentes do Rio Doce, por meio do projeto Olhos D’Água. Em 2015, Sebastião e Lélia explicaram que, àquela altura, já haviam restaurado nascentes em sete municípios, com a meta ambiciosa de recuperar todas as 370 mil. “Nós podemos fazer, mas com todos juntos. É um problema de todos: de governo, de empresas e dos cidadãos, é um problema nosso”, afirmou Salgado ao Jornal Hoje.
Belíssimo compromisso de Salgado com a ecologia integral, em perfeita sintonia com sua obra fotográfica, potência ética: humanismo que não se limita ao humano, mas abarca o planeta, os ecossistemas e todas as formas de vida.
Perdemos um mestre, um humanista, um artista insurgente. Sua obra permanece: como denúncia, como beleza, como legado. E também como floresta — renascida, exuberante, resistente.
Nestes mesmos dias de luto civilizacional, partiu também Evanildo Bechara, um dos mais importantes filólogos, gramáticos e intelectuais do Brasil e do mundo. Sua trajetória é indissociável da história do estudo das Letras no país e da própria formação de gerações de professores e estudiosos da língua portuguesa.
Bechara dedicou mais de seis décadas à docência e à pesquisa, notadamente na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde se formou, obteve seu doutorado, lecionou desde 1962 e tornou-se professor titular e emérito. Foi também membro da Academia Brasileira de Letras desde 2001 e laureado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra, sendo internacionalmente reconhecido por sua contribuição ímpar ao campo da linguística.
Sua obra monumental reúne centenas de artigos e mais de uma dezena de livros essenciais para a compreensão da língua portuguesa, entre eles a célebre Moderna Gramática Portuguesa, publicada pela primeira vez em 1961, e que desde então superou as 40 edições, tornando-se referência incontornável no ensino e no estudo da língua.
Afirmava: “A grande missão do professor de língua materna é transformar seu aluno num poliglota dentro de sua própria língua”, reconhecendo que o português não é uno, mas múltiplo, e que a norma culta não deve ser uma prisão, mas uma ferramenta ética e social, sempre sensível às variações e aos contextos.
Bechara foi mais do que um gramático: foi um humanista que compreendeu a língua como espaço de resistência e de liberdade.
Eu, particularmente, sinto muito quando figuras como essas partem. Não as conheci pessoalmente, mas suas ideias, exemplos e gestos sempre me inspiraram e ajudaram a acreditar que é possível, sim, melhorar o mundo. São pessoas que ampliam nossa compreensão do papel da humanidade no mundo e suas dimensões de dignidade, de justiça, de beleza e de responsabilidade.
Por isso, mais do que o lamento, resta-nos o compromisso: seguir cultivando, à nossa maneira, as sementes que eles plantaram — com coragem, com ética, com esperança —, preservando o que precisa ser preservado e mudando o que tem que ser mudado. Porque, no fundo, é isso que nos cabe diante de quem nos ensinou a não aceitar o mundo como ele está, mas a lutar por aquilo que ele ainda pode ser.
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