
Nos últimos dias, viralizou uma fala do neurocientista Sidarta Ribeiro que denuncia um fenômeno inquietante: a perda do espaço para o simbólico, para a metáfora, para a imaginação. Segundo ele, as novas gerações estão se tornando excessivamente literais porque vivem em um mundo no qual o pensamento abstrato e a criatividade estão em pleno declínio. Essa erosão, entretanto, não acontece apenas no campo da linguagem – ela começa na própria estrutura da mente, na maneira como lidamos com os sonhos, com o inconsciente e com a nossa (in)capacidade de criar.
Sidarta Ribeiro é um dos principais neurocientistas do Brasil, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), especialista em sono, memória e neuroplasticidade. Em sua trajetória acadêmica, tem se dedicado a compreender a relação entre o sono e a criatividade, explorando como os sonhos desempenham um papel essencial em nossa capacidade de inovar e imaginar. Seu livro O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho (2019) aborda essa questão e investiga a importância dos sonhos para a humanidade desde tempos ancestrais até a contemporaneidade.
Em entrevista ao jornal Estadão, Ribeiro explica que a sociedade contemporânea está cada vez mais desconectada dos sonhos – e isso não é apenas uma metáfora. A redução do tempo de sono, o hiperestímulo digital e a falta de contato com a própria subjetividade estão minando os processos cognitivos mais importantes para a criatividade e o pensamento abstrato.
“Nosso modo de viver impede que entremos em contato com o sonho, seja como memória, seja como narrativa (…) Acordamos atrasados, com o celular na mão, e não nos lembramos do que sonhamos e, muito menos, conseguimos contar o sonho para outras pessoas e interpretá-lo.”
O empobrecimento cognitivo na Era das Telas
A pesquisa de Sidarta Ribeiro sugere que a falta de sonhos tem comprometido a nossa capacidade de conectar ideias, interpretar símbolos e desenvolver um pensamento mais sofisticado. Todavia, essa não é apenas uma questão fisiológica – ela possui implicações políticas, sociais e culturais.
De fato isto se tornou rotineiro: acordamos e, antes mesmo de termos um pensamento próprio, já estamos imersos em estímulos digitais. Checamos o celular, recebemos notificações, consumimos uma avalanche de informações fragmentadas. O tempo da contemplação se perde. O tempo da dúvida, do questionamento, da reflexão, do mergulho na própria mente vai sendo trocado por interações cada vez mais rasas e instantâneas.
Tudo isso possui efeitos diretos em nossa relação com a leitura e com a produção intelectual. Sidarta Ribeiro observa que muitos jovens universitários já demonstram dificuldades para ler textos longos ou interpretar ideias complexas. Em um estudo realizado em seu laboratório, ele verificou que a leitura é fundamental para o desenvolvimento do discurso elaborado. Quem lê mal e não tem prazer na leitura, perde também a capacidade imaginativa e o espaço para o lúdico, o alegórico torna-se cada vez mais escasso.
Não é difícil perceber como isso afeto o nosso cotidiano. Basta olhar para a maneira como os debates políticos e sociais são travados hoje. Há uma tendência crescente de reduzir tudo a polarizações simplistas (e até mesmo simplórias), de eliminar nuances alargadas, de abandonar a interpretação analítica para aderir a verdades absolutas e respostas fáceis e, quase sempre, levianas. Essa literalidade do pensamento não é apenas um sintoma da pressa contemporânea – é um claríssimo reflexo de um processo bem mais profundo do mais completo empobrecimento da subjetividade.

O ataque às humanidades e a crise do pensamento simbólico
A crise do pensamento simbólico (alegórico, lúdico, filosófico, artístico etc) não está apenas no campo individual. Ela também é estimulada por políticas que desvalorizam as humanidades, marginalizando disciplinas como a filosofia, a sociologia, a literatura e as artes. Em diferentes governos ao redor do globo, temos visto um desprezo crescente por essas áreas do conhecimento, tratadas como supérfluas ou, em alguns casos, até como ameaçadoras.
Isso não é por acaso. O pensamento crítico, a interpretação de textos e a capacidade de questionar são obstáculos para qualquer sistema que busque domesticar a sociedade. Quanto mais literal (e também binário) e menos reflexivo for o pensamento de um povo, mais fácil será manipular discursos, impor narrativas rígidas e limitar o espaço para a crítica.
O problema é que essa crise já está afetando a maneira como vivemos. Sem metáforas, sem alegorias, sem poesia, sem filosofia, nos tornamos reféns de um mundo seco, pragmático, excessivamente utilitarista e integralmente instrumentalizado. Um mundo em que a criatividade é sufocada pela lógica da produtividade full time, da mítica meritocracia e da catilinária eficiência desumanizada.
Em tempos não tão distantes, antes da hiperconectividade e da avalanche de telas, havia espaço para a imaginação, a criatividade e o simbólico. Foi assim que Aristóteles estabeleceu as bases da filosofia e da lógica, que Leonardo da Vinci desenhou máquinas voadoras séculos antes da aviação e que Santos Dumont transformou esse sonho em realidade. Foi assim que Vinícius de Moraes converteu a melancolia em poesia e Chico Buarque teceu as mais inteligentes críticas sociais em canções. O pensamento abstrato permitiu que Carlos Drummond de Andrade criasse os geniais versos que eternizam o cotidiano e que Clarice Lispector explorasse os tortuosos labirintos da existência com sua prosa única. Albert Einstein concebeu a Teoria da Relatividade não apenas com a rigidez metodológica da ciência, mas com uma profunda capacidade de imaginação. Guimarães Rosa pôde reinventar a língua, Ariano Suassuna criou o realismo mágico do sertão, Oscar Niemeyer desenhou curvas que desafiam o concreto. Mas e agora? O que acontece quando esse espaço se reduz? O que restará de uma civilização que abandona a arte, a filosofia e os sonhos?
Resistir ao declínio do simbólico e reestabelecer a filosofia e a cultura
O que podemos fazer diante desse cenário? Sidarta Ribeiro nos sugere um caminho: precisamos resgatar a conexão com o mundo dos sonhos. Ele propõe que as pessoas anotem seus sonhos, contem suas experiências oníricas e busquem se reconectar com essa dimensão perdida da mente. Mas essa não é apenas uma questão individual – ela precisa ser um movimento coletivo.
Defender a arte, a literatura, a música, a filosofia e o pensamento crítico não é um mero capricho intelectual. É uma necessidade urgente para que possamos manter a nossa capacidade de interpretar, questionar e imaginar futuros diferentes. O combate à literalidade não se faz tão somente na defesa do sono e dos sonhos, mas na valorização da cultura, do conhecimento e das humanidades.
O mundo contemporâneo nos empurra para o raso, para o instantâneo, para o descartável. Resistir a isso significa desacelerar, refletir, contemplar, ler, interpretar. Significa, sobretudo, resgatar o espaço da metáfora, da fantasia e da complexidade em um tempo que insiste em reduzi-los.
O desafio que temos pela frente não é dormir mais – é despertar para o risco de perdermos o que há de mais humano em nós: a capacidade de imaginar.
PS:
O texto do Estadão retrata a fala Sidarta Ribeiro. disponível no link a seguir:
E também no vídeo da entrevista disponível no YouTube:
Comments