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121Km no labirinto da existência


Cheguei em Congonhas. Podia dizer só isso. Que percorri 121 km desde Itaguara, passando por Piracema, Passa Tempo, Desterro de Entre Rios, Pereirinhas, Entre Rios de Minas, São Brás do Suaçuí e Alto Maranhão. Que enfrentei terra, asfalto, cascalho, fazendas antigas como as dores que carregamos, trechos da Estrada Real e pistas que pareciam querer me engolir. Que furei um pneu. Que senti sede, fome, dor, cãibras. Mas nada disso seria suficiente.


Porque essa não foi uma simples pedalada. Foi uma travessia.


Saí de noite, sozinho, numa sexta-feira da Paixão. Enquanto muitos lembravam os últimos passos de Cristo pelas ruas de Minas, eu os revivia no escuro da madrugada, sobre duas rodas. Meu corpo virou cruz. Minhas pernas, pregos. O caminho, meu calvário.


A primeira hora foi de euforia. Depois, o mundo foi ficando rarefeito. Cada encruzilhada parecia um portal. As estradas bifurcadas traziam dúvidas: “Será por aqui?” — e a pergunta não era só sobre direção, era sobre sentido. No meio do mato, sem placa, sem certeza, escolhi confiar nos meus guias. E eles vieram.


À meia-noite, um sino de igrejinha tocou. Seco, cortando o silêncio como uma navalha no escuro. Não havia ninguém ali, além de mim. Mas ouvi. E soube: estava sendo observado. A presença de meu Guardião se fez sentir — aquele que abre e fecha os caminhos, o senhor das passagens, o senhor das encruzilhadas. Ali, compreendi que não estava só. Tinha quem me abrisse os caminhos, quem cuidasse das sombras para que eu pudesse passar. E passei.


E mais do que estrada, percorri a mim mesmo. Passei por vilas, cidades e memórias. Encontrei pedaços meus esquecidos no barro vermelho, no cheiro de capim molhado, no latido solitário de um cão atrás de uma cerca. A bike tremia nas pedras, o coração também. Mas eu seguia. Porque havia algo me puxando pra dentro, não pra frente.


Não era o GPS que guiava. Era o instinto, a necessidade, a voz rouca da alma gritando no escuro: vai. Vai porque o mundo lá fora não cala o mundo aqui dentro. Vai porque, se você não for agora, talvez nunca mais vá.


Em algum momento entre Entre Rios e São Brás, a estrada virou um labirinto. E no centro dele, estava eu. Nu de distrações. Sem música, sem conversa, sem amparo. Só a respiração pesada, o ranger da corrente e o barulho surdo dos pensamentos se chocando.


Ali, olhei pro abismo da minha existência. E não fugi. Gritei pra ele:


SE EU NÃO VIVER, QUEM VAI VIVER POR MIM?


E o abismo, pela primeira vez, não respondeu. Apenas respeitou o silêncio de quem finalmente entendeu que viver é também atravessar-se.


Cheguei em Congonhas com o corpo em ruínas e a alma em festa. Mais leve. Mais inteiro. O sol já alto iluminava os profetas em pedra e, por um segundo, achei que estavam olhando pra mim. Talvez estivessem.


Porque naquele instante, eu não era só um ciclista. Era um homem que tinha mergulhado no mais fundo da existência.


Essa foi a minha jornada iniciática.

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